Há
um século subia ao Trono Pontifício um Papa Santo. Em 4 de agosto de
1903, o Cardeal Giuseppe Sarto foi eleito para o Sumo Pontificado, como
sucessor de São Pedro, sendo coroado a 9 do mesmo mês. São Pio X, um dos
maiores Pontífices de todos os tempos, foi o único Papa canonizado no
século XX.
Nos
primórdios do século XX, no mundo inteiro pipocavam revoluções de cunho
anarquista, visando abalar as últimas colunas que restavam da
Civilização Cristã.
E
na Santa Igreja a situação não era menos grave. Verdadeiras heresias,
infiltradas nos meios católicos, minavam os fundamentos da Igreja duas
vezes milenar. Compelida a combater os inimigos externos, a Igreja
estava sendo corroída também por inimigos internos, principalmente pela
conspiração organizada pelo movimento então denominado modernista —
precursor do progressismo católico de nossos dias.
Nessa terrificante encruzilhada, morre o Papa Leão XIII, a 20 de julho de 1903.
Urgia,
em vista desse quadro, o aparecimento de um providencial defensor da
Igreja e da Cristandade. A Divina Providência suscitou então um Papa
Santo, dotado de extraordinária grandeza de alma.
Eleição e coroação de São Pio X
Transcorridos
os 11 dias de orações, prescritos para sufrágio da alma do Papa Leão
XIII, recém-falecido, os cardeais da Santa Igreja (em número de 62, na
época) iniciaram o Conclave — reunião do Colégio cardinalício com o
objetivo de eleger o novo Papa.
Os
primeiros escrutínios indicavam a escolha do Cardeal Rampolla — que
fora colaborador direto de Leão XIII. Mas no dia 1º de agosto foi
comunicado aos cardeais, no Conclave, o veto do Imperador da Áustria,
Francisco José. Veto que, segundo uma tradição, poderia ser exercido
pelo Imperador austríaco.
Devido
a isso, o Cardeal Giuseppe Sarto, de Veneza, passou a ser o preferido.
Entretanto, num exercício de autêntica humildade, pedia aos cardeais que
nele não votassem. Mas ele era o escolhido também pela Divina
Providência. No sétimo turno da votação, o Cardeal Sarto, por
insistência de vários de seus pares no Sacro Colégio, acabou aceitando
(1) e foi eleito o 259º sucessor de São Pedro, por 50 votos a seu favor,
no dia 4 de agosto de 1903.
O
Cardeal Sarto, de cabeça baixa, ouviu o resultado do sufrágio. Segundo o
costume, aproximou-se dele o Cardeal Decano e perguntou-lhe se
aceitaria ou não a eleição à Sede Pontifícia.
Com os olhos banhados em lágrimas, e a exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, respondeu: “Se não for possível afastar de mim esse cálice, que se faça a vontade de Deus. Aceito o Pontificado como uma cruz”.(2)
Após cinco dias, teve lugar a grandiosa cerimônia de coroação do sucessor de São Pedro, para a glória da Santa Igreja.
Magníficas obras pela restauração da Cristandade
O
glorioso, árduo e fecundo pontificado desse Vigário de Cristo durou 11
anos. Nesse período, foram lançados mais de 3.000 documentos oficiais,
com o objetivo de Instaurare omnia in Christo — conforme seu lema. E tem estreita analogia com esta sua afirmação: “Se alguém pedir uma palavra de ordem, sempre daremos esta e não outra: Restaurar todas as coisas em Cristo”.(3)
Nesse
sentido de restaurar todas as coisas em Cristo, foram numerosas e
admiráveis as obras empreendidas pelo Santo Pontífice para defender a
Civilização Cristã gravemente ameaçada.
Em
seu esplêndido livro de memórias, o Cardeal Merry del Val, Secretário
de Estado de São Pio X, enumera de passagem algumas dessas obras:
“A
reforma da Cúria Romana; a fundação do Instituto Bíblico; a construção
de seminários centrais e a promulgação de leis para a melhor disciplina
do clero; a nova disciplina referente à primeira comunhão e à comunhão
freqüente; o restabelecimento da música sacra; a vigorosa resistência
movida contra os fatais erros do chamado modernismo e a corajosa defesa
da liberdade da Igreja na França, Alemanha, Portugal, Rússia e outros
países, sem aludir a outros atos de governo, justificam certamente que
Pio X tenha sido destacado como um grande Pontífice e um diretor humano
excepcional. Posso testemunhar que todo esse enorme trabalho foi devido
principalmente e — muitas vezes — exclusivamente à sua própria idéia e
iniciativa. A História haverá de proclamá-lo como algo mais que um Papa
cuja bondade ninguém seria capaz de discutir.
Os
limites que me impus ao traçar estas breves Memórias me impedem de
entrar a fundo no estudo das diversas e importantes questões a que mais
acima me referi; mas há uma delas cuja importância creio merecer
especial atenção neste curto relato, e esta é a compilação do novo
Código de Direito Canônico”.(4)
O
Cardeal, fidelíssimo Secretário de Estado de São Pio X, passa a narrar o
intenso trabalho do Santo Padre para reorganizar e aprimorar o novo
Código, uma vez que o anterior era um emaranhando confuso, uma
legislação que se prestava a diversas interpretações.
Foram
11 anos de trabalho quase ininterrupto, mas ao cabo dos quais a
admirável codificação ficou praticamente pronta nos últimos dias de São
Pio X, em 1914. Seu sucessor, Bento XV, rendeu-lhe uma merecida
homenagem, promulgando o novo Código elaborado por seu augusto
predecessor.
Mansidão do cordeiro, força do leão
Uma palavra a respeito de uma característica em que se destacou no mais alto grau São Pio X: sua extrema bondade, ao lado de uma indomável energia.
Sobre
isso, nada melhor que darmos a palavra a quem o conheceu mais de perto,
e devotadamente o serviu por 11 anos — seu próprio Secretário de
Estado, o Cardeal Merry del Val:
“Seria
um grande erro crer que esta característica [a bondade] tão atraente de
Pio X o retratasse plenamente ou resumisse seus dotes e qualidades;
nada mais longe da verdade. Ao lado dessa bondade, e de modo feliz
combinada com a ternura de seu coração paternal, possuía uma indomável
energia de caráter e uma força de vontade que podiam testemunhar, sem
vacilação, os que realmente o conheceram, embora em mais de uma ocasião
surpreendesse, e até causasse estranheza àqueles que somente haviam tido
ocasião de experimentar sua delicadeza e reserva habituais.
Mantinha
um absoluto senhorio de si e dominava os impulsos de seu ardente
temperamento. Não vacilava em ceder em assuntos que não considerava
essenciais, e até estava disposto a considerar e aceitar a opinião de
outros se isso não implicasse em risco para algum princípio; mas não
havia nele nenhuma debilidade.
Quando
surgia alguma questão na qual se fazia necessário definir e manter os
direitos e liberdade da Igreja, quando a pureza e integridade da Verdade
Católica requeriam afirmação e defesa, ou era preciso sustentar a
disciplina eclesiástica contra o relaxamento ou influência mundanas, Pio
X revelava então toda a força e energia de seu caráter e o intrépido
valor de um grande Pontífice consciente da responsabilidade de seu
sagrado ministério e dos deveres que julgava ter que cumprir a todo
custo.
Era
inútil, em tais ocasiões, que alguém tratasse de dobrar sua constância;
toda tentativa de intimidá-lo com ameaças, ou de afagá-lo com sedutores
pretextos ou recursos meramente sentimentais, estava condenada ao
fracasso”.(5)
A conjuração do movimento modernista
Esse
santo varão, que derramava copiosas lágrimas considerando a paixão da
Santa Igreja, era entretanto de uma severidade ímpar contra o mal.
Depois
de esgotar todos os recursos ao seu alcance para levar alguém à
conversão, severamente condenava. Estava sempre disposto a perdoar, por
assim dizer, maternalmente. Mas se a pessoa persistisse no erro e, pior,
procurasse contaminar outros com seus desvios, o Santo Papa a reprovava
energicamente.
Foi o que ocorreu quando condenou o movimento modernista — “síntese de todas as heresias”,
conforme o definiu —, que se infiltrara sub-repticiamente nas próprias
fileiras católicas, com a finalidade de modernizar, adaptar e deturpar
inteiramente o ensinamento tradicional da Igreja.
Assim,
o Santo Padre lançou várias advertências aos mentores desse movimento,
os quais não as levaram em consideração, pois se obstinavam no mal e
procuravam corromper outros membros da Igreja e até mesmo da alta
Hierarquia eclesiástica. Publicou então sua estupenda Encíclica Pascendi Dominici Gregis, de 8 de setembro de 1907, fulminando o modernismo . Tal documento completava a condenação já expressa no Decreto Lamentabili Sane Exitu, de 3 de julho do mesmo ano.
O neomodernismo de nossos tempos
Como
se pode observar, vem de há muito a tentativa de infiltração no
interior da Santa Igreja, por parte de inimigos velados ou declarados, a
fim de “modernizar”, adaptar aos novos tempos e adulterar o Magistério
tradicional e infalível da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Peçamos
ao ínclito Papa São Pio X o discernimento, a argúcia, a energia e a
combatividade que ele teve ao enfrentar destemidamente as raízes dos
erros que, em nossos dias, professa o chamado progressismo católico,
continuador do modernismo de sua época.
São Pio X condena o modernismo
“Os mais perigosos inimigos da Igreja”
“Não
se afastará, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos
inimigos da Igreja. Estes, em verdade, como dissemos, não já fora, mas
dentro da Igreja, tramam seus perniciosos desígnios; e por isto, é por
assim dizer nas próprias veias e entranhas dela que se acha o perigo,
tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Além de que,
não sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas raízes, que são a
Fé e suas fibras mais vitais, é que meneiam eles o machado. Batida pois
esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vírus por toda a
árvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade católica, nenhuma
verdade há que não intentem contaminar. E ainda vão mais longe; pois,
pondo em obra o sem número de seus maléficos ardis, não há quem os vença
em manhas e astúcias, porquanto fazem promiscuamente o papel ora de
racionalistas, ora de católicos, e isto com tal dissimulação, que
arrastam sem dificuldade ao erro qualquer incauto; e sendo ousados como
os que mais o são, não há conseqüências de que se amedrontem e que não
aceitem com obstinação e sem escrúpulos (nº 3) [...].
Já
não se trata aqui do velho erro, que à natureza humana atribuía um
quase direito à ordem sobrenatural. Vai-se muito mais longe ainda;
chega-se até a afirmar [na doutrina modernista] que a nossa santíssima
religião, no homem Jesus Cristo assim como em nós, é fruto inteiramente
da natureza. Nada pode vir mais a propósito para dar cabo de toda ordem
sobrenatural” (nº 10).
(Encíclica de São Pio X sobre as Doutrinas Modernistas, Pascendi
Dominici Gregis, de 8-9-1907, Editora Vozes Ltda, Petrópolis, 1948, pp.
4-5; 10-11).
_____________________________________________________________________
Notas:
1
Na contracapa da edição de julho de Catolicismo, vem descrito o papel
fundamental representado pelo então Mons. Merry del Val (depois Cardeal)
para convencer o Cardeal Sarto a aceitar o resultado da eleição.
2 P. Girolamo Dal-Gal, Pio X il Papa Santo, Libreria Editrice Fiorentina, Firenze, 1940, p. 135.
3 Op. cit., p. 133.
4 Cardeal Rafael Merry del Val, Memorias del Papa Pio X, Sociedad de Educación Atenas, S.A., Madrid, 1946, pp. 103-105.
5 Op. cit., pp. 45-46.
Artigo oferecido pela Revista Catolicismo
www.lepanto.com.br
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